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JOGO DE IDENTIFICAÇÕES DE UMA GERAÇÃO A OUTRA


Existe um fenômeno que ocorre entre as relações, e que ultrapassa gerações que é chamado de transmissão psíquica. No momento em que nos relacionamos não estamos atentos a este processo, mas de fato, estas questões nos influenciam.

A transmissão psíquica, segundo a autora Correa (2003), exige um importante trabalho no qual participam de identificação junto a uma série de projeções-introjecões. As mudanças nos sistemas de transmissão psíquica e socioculturais, assim como suas fissuras, aquilo que fica oculto, não dito ou “mal dito”, atravessando as gerações na dimensão do transgeracional. Quando é marcada pelo negativo, o que se transmite é aquilo que não pode ser contido, o que não encontra inscrição no psiquismo dos pais é depositado no psiquismo da criança: os lutos não realizados, os objetos desaparecidos sem traço nem memória, a vergonha, as doenças e a falta. De acordo com Granjon, (2000) o transmitido, então, será o traço daquilo que se passou e não pôde ser pensado, com seu cortejo de terror, vergonha e interdições.

Abraham (1995) assinala nos seus estudos sobre fantasma como uma sombra, tratando-se de uma formação do inconsciente com a particularidade de nunca ter sido consciente, e decorrendo da passagem do inconsciente de um dos pais para o inconsciente do filho de maneira intrusiva, com uma função diferente do recalcado dinâmico; assim, o fantasma transmitido ao filho encerra aquilo que, para o pai ou para a mãe, teve valor de ferida ou catástrofe narcisista.

O processo de transmissão entre as gerações sustenta valores, crenças e diversos saberes que asseguram a continuidade grupal e cultural como a tradição. Alguns sintomas da patologia e do sofrimento psíquico estão referidos a falhas nos apoios da vida pulsional, quando o sujeito desenvolve formações psíquicas que interferem na formação dos processos de incorporação de objetos internos seguros, envolvendo em particular a relação precoce mãe-bebê (Correa, 2003).

Para compreender a transmissão do psiquismo entre sujeitos, e entre gerações, é fundamental compreender a relevância do papel do outro na formação do psiquismo do sujeito. As considerações pertinentes à transmissão psíquica entre gerações são encontradas já em Freud, em Totem e tabu (1913), ao se referir à continuidade psíquica na série das gerações - e também em Introdução ao narcisismo (1914), ao destacar que o indivíduo é, em si mesmo, seu próprio fim, mas se encontra vinculado a uma corrente geracional como elo da transmissão, sendo herdeiro da mesma.

A família é um complexo sistema de relação, lugar de construção vincular e de pertencimento, bem como de necessidade de individualização e de funções, onde as diferenças devem ter seu reconhecimento. Hartmann e Schestatsky (2011) corroboram que é através do sistema familiar algo muito complexo é transmitido, esse algo que nos atrela a este sistema, não se pode reter nem lembrar, mas são as doenças, a parentalidade, a vergonha dos objetos perdidos, o recalcamento, os enlutados que vem sempre a assombrar.

De acordo com Alaugnier (2001) desde antes do nascimento do bebê já existe um discurso concernente a ele, uma espécie de sombra falada que, ao nascer, a mãe projetara sobre ele, sobre seu corpo, passando a ocupar um lugar para onde são dirigidos os enunciados identificantes do discurso materno e por consequência de toda família.

Diante este conjunto se desenrolam ações psíquicas que alimentam ou libertam repressão, apagam afetos e/ou agem como renuncia pulsional. Segundo Kaës (1998) os meios de se apossar desta herança podem ser por via de identificação, por incorporação, por suas próprias exigências ou pela coação da repressão.

Através da transmissão psíquica transgeracional que se transfigura no tempo em uma teia de significações carregadas de afetos, sentimentos semi-intencionais, podem interferir na subjetividade em construção. Cada um de nós é portador de heranças que vão além de representações paternas e maternas conteúdos implícitos, segredos, ditos e não ditos, tabus que não se externa.

A noção de mundo vem através da família na qual nascemos, da aprendizagem, dos traços afetivos emocionais. E é preciso ser entendido o percurso simbólico dessa transmissão transgeracional, para saber por que somos herdeiro múltiplos das experiências ancestrais, vinculados por elos emocionais de processos ativos de intromissões. Marcas transgeracionais são deixadas na vida psíquica do sujeito que podem muito enriquecer como torná-lo prisioneiro de uma história que não é a sua, mas que deve aceitar desse jeito, porque isso faz parte da subjetivação geracional de cada herdeiro (Trachtenberg, et al., 2013).

Se a vida psíquica for marcada de forma traumática trata-se de uma transmissão alienante e não estruturante que possibilita vínculos patológicos sufocantes que ao ocorrerem de forma sistemática impede a singularização, pois impõem aos descendentes vivências frustrantes. Trachtenberg, et al. (2013) referem que neste processo, a função de apropriação-intrusão é uma característica, sendo que, por solidariedade a seus pais, o sujeito não tem permissão para existir psiquicamente em nenhum outro registro, construindo-se como portador de uma história que, em parte, não é sua.

Com isso, torna-se importante, ao pensar em uma nova vida, poder refletir sobre as marcas psíquicas que os pais carregam. Oportunizado, em um espaço de escuta, para que se rompa com as amarras inconscientes.

Referências

Abraham, N. & Torok, M.(1995) A casca e o núcleo. São Paulo: Editora Escuta.

Abraham, N. O trabalho do fantasma no inconsciente e a lei da nesciência. In: Abraham, N. & Torok, M.(1995) A casca e o núcleo. São Paulo: Editora Escuta.

Aulagnier, P. C. (2001) Lá violência de lá interpretacion: dela pictogramas al enunciado. Buenos Aires: amorrortu.

Correa, O.B.R. Transmissão Psíquica entre as gerações. Psicologia USP, 2003, 14(3), 35-45.

Granjon, E. A elaboração do tempo genealógico no espaço do tratamento da terapia familiar psicanalítica. In: CORREA OBR. (org.). Os avatares da transmissão psíquica geracional. São Paulo: Escuta, 2000.

Hartmann IB, Schestatsky S. Transmissão do psiquismo entre as gerações. Rev. bras. psicoter. 2011;13(2):92-114

Kaës, R. (1998). Os dispositivos psicanalíticos e as incidências da geração. In: A. Eiguer, A transmissão do psiquismo entre gerações: enfoque em terapia familiar psicanalítica (pp. 5-19). São Paulo: Unimarco Editora.

Kaës, R. Introdução ao conceito de transmissão psíquica no pensamento de Freud. In: Kaës, R. et al. Transmissão da vida psíquica entre gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

Trachtenberg, A. R. C. Et al. (2013) Transgeracionalidade de escravo a herdeiro: um destino entre gerações. Porto alegre: Eu Lima.


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