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O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento do ser humano.


Esse texto pretende revisitar aspectos fundantes para o desenvolvimento do indivíduo, desde os seus primórdios e entre os ângulos a serem considerados está a preponderante função materna e da família como espelho de um mundo interno e externo que a criança tem a chance de construir em sua formação, sob a ótica poética e singular de Winnicott (pediatra e psicanalista inglês).

Essa experiência é pessoal e intransferível, ou melhor, na construção e formação do subjetivo humano cada aspecto, interação e possibilidades ou não de trocas são próprios para cada bebê e para cada ambiente. Trata-se de um período inicial no qual ainda o bebê não separou o ambiente de si mesmo, num estágio anterior a gradativa separação entre ele e o outro (entre o não-eu e o eu).

O aspecto fundamental para que esse processo de separação se estabeleça está nas provisões ambientais que envolvem: o manejo, a forma de oferecer confiabilidade e sustentação maternas, o suporte do pai para que a mãe possa fazer sua maternagem e a apresentação do mundo (objetos) ao bebê.

Para Winnicott toda criança é apresentada e introduzida ao mundo pela mãe e pela família; são estes que a protegem e são os mesmos que devem sobreviver, mesmo diante de pequenos ódios e da agressividade de seus filhos. Esta sobrevivência é essencial para que se incorpore o sentimento de que os conflitos possam ser vistos de frente e possam ser lidados não como uma desestruturação individual e/ou grupal, mas como um exercício das potências de cada um e do crescimento da individualidade, dentro do grupo familiar.

Apesar de Winnicott partir de Lacan para desenvolver a etapa do espelho, atribuiu a essa função especular uma compreensão diferente: afirma (...) o que o bebê vê, quando olha para o rosto da mãe? Sugiro que, normalmente, o bebê vê a ele mesmo".

Para o autor a experiência do bebê poder se olhar por meio do rosto materno, lhe possibilita ser visto e incorporar que, ao mesmo tempo, em que pode olhar e ser olhado, então pode existir. Parte-se de uma comunicação e interação não-verbais e que a partir desse período mais primitivo o sujeito começa a constituir-se. Partindo desse pressuposto entende-se a importância de que a figura real materna possa ser utilizada como um bom reflexo para seu bebê, a medida em que reflete o que ele é e não uma imagem distorcida de si.

Nesse sentido é importante citar um exemplo clínico fictício que possa esclarecer a importância desse processo inicial na vida de cada bebê em formação. Um dele, o de um bebê, cuja mãe não se encontrava em condições de criá-lo, dando o filho para adoção no mesmo dia em que deu a luz. Porém, uma das solicitações que a mãe fez em relação a sua adoção era que a sua família adotiva não tivesse a sua mesma cor de pele que é negra. A instituição que recebeu esse bebê, bem como ele próprio tinham ainda a esperança de que essa mãe mudasse de ideia, embora isso não tenha ocorrido. Após algumas semanas de vida esse bebê começa a apresentar descamações na pele e um problema respiratório difícil.

Tem-se acompanhado vários trabalhos e pesquisas pré e perinatais a cerca da atividade fetal, da interação do bebê com a mãe, desde sua concepção e do quanto o mesmo escuta e capta o que se diz a ele que em exemplos como esse e muitos outros, os profissionais, analistas, observadores da relação pais-bebê e terapeutas cada vez mais utilizam em suas atividades sua fala direta com esses pequenos junto a seus pais, a fim de ajudá-los a lidar com conflitos. Nesse exemplo acima a medida em que a analista pode dizer ao bebê que ele não precisa trocar de pele por isso, porque ele sempre será o filho dos pais que o conceberam e que seus pais verdadeiros permanecerão nele. Como também dizer o que ocorreu com esse bebê e que o fato dele ter nascido agora pede que ele se permita respirar para seguir vivendo. Exemplo de uma fala dirigida ao bebê: -"Não é porque você respirou que se separou da sua mãe e não será parando de respirar que a reencontrará."

Dentro do olhar Winnicottiano pode se ver que esse bebê fez dois sintomas, cada qual comunicando uma faceta de suas vivências e dificuldades primitivas. O primeiro era uma descamação, sintoma que parece evidenciar a presença de um desejo materno, percebido de alguma maneira por ele e o segundo, não expressa explicitamente um desejo materno, fala de um desejo do próprio bebê ou seria o bebê apenas um representante do desejo materno, uma manifestação somática desses dois corpos (mãe-bebê) que já foram um só?

Tal como na relação mãe-bebê, na psicoterapia tem-se um derivado complexo do rosto que reflete o que há para ser visto, ou seja, pode devolver ao bebê (paciente) aquilo que ele manifesta, em muitas vezes de forma visceral.

Essa demanda imperiosa do início da vida pode ser bem representada pela forma como o pintor irlandês Francis Bacon expressa sua arte, cujas obras chamam atenção justamente pelos rostos deformados, distantes de uma percepção real e pela utilização de vidros nas mesmas. De acordo com Winnicott, talvez numa grande ânsia de ser visto , sem contar com a possibilidade de, ao verem suas pinturas, as pessoas pudessem ver a si mesmas. Entre os vários comentários sobre sua produção artística está o fato de que olhar seus quadros é como olhar no espelho e ver as aflições, medos, ameaças e angústias humanas.

Aqui é pertinente a vinculação entre a dependência e a condição do bebê ser percebido ou não. Este bebê tem um potencial hereditário e depende do ambiente para o desenvolvimento desse potencial ou não, caso contrário, pode vir a ter falhas nesse percurso que mais tarde acabam por repetir-se, criando vivências semelhantes àquela em que se sentiu desamparado, por exemplo.

Quando a mãe pode e consegue desenvolver a "preocupação materna primária", descrita por Winnicott reúne condições para as primeiras interações amorosas, pelas quais se formam os primeiros vínculos afetivos de seu bebê. Não se trata de ser uma mãe "boa demais" e nem tampouco de ser uma "mãe insuficiente", mas de ser uma "mãe suficientemente boa", isto é, nem daquela que não dá espaço para surgir o eu, o desejo do seu bebê e nem aquela que tenta aplacar qualquer situação ameaçadora por conta de sua própria ansiedade, nem tão pouco daquela que deixa grande lacunas e provoca a sensação de abandono no mesmo. É a mãe que acerta e falha para que na sua ausência o seu bebê possa criar condições de alucinar, pelo tempo razoável, diante daquilo que lhe falta.

Obviamente que estas "falhas" ou "faltas maternas" compreendem uma certa dosagem do que é suportável, acima disso, começam a imprimir no psiquismo do bebê privações de uma ordem maior que podem resultar mais tarde naquilo que Balint chama de "falha básica", provocando o surgimento de dificuldades e patologias tais como a disjunção psique-soma ou melhor, o que hoje se chama de transtornos somatoformes, ansiedade generalizada e etc. O limiar para suportar as tais "falhas" maternas é individual e peculiar para cada bebê, bem como sua constituição e potenciais herdados. A medida em que a mãe exerce já citada "preocupação materna primária", apresenta maiores chances de perceber esse quantum razoável; nesse período é sabido que a mãe é o bebê e o bebê é a mãe.

Essa condição possibilita à mãe um mergulho num mundo no qual ela já esteve e que, por um certo tempo, precisa manter-se, a fim de colocar-se no lugar do bebê, além do que a partir dessa dupla mãe-bebê fusionada, o bebê recebe um referencial para a estruturação do seu ego, de sua existência. Construir-se como um indivíduo é ter tais vivências, por meio: de vários ritmos, tempos, espaços, atitudes, "falhas suportáveis", formas de segurar (holding), manejo (handling), expressão facial, corporal, ou seja, toda a gama variada de comunicação visceral com sua mãe.

Nesse jogo de acertos e erros é que surge a adaptação bem sucedida que provoca a saúde psíquica, uma vez que o bebê percebe o quanto a mãe procura esmerar-se nos cuidados para com ele, na consolidação de uma confiança constituída por um amor humano.

O Método de Observação da Relação Pais-Bebê de Bick ilustra e sublinha de forma muito especial a construção dessa função materna, uma vez que por meio dele se criam condições favoráveis para a dupla vivenciar suas experiências emocionais primitivas. Após o nascimento a morada uterina é reconstituída pelos braços, peito, calor, cheiro, voz e colo da mãe, desta forma este vínculo segue sua consolidação e o papel da observadora completa o interjogo especular, na medida em que serve de espelho para a mãe que nasce para seu bebê e vice-versa.

Pensar a função materna e da família e seu papel na construção do indivíduo é muito mais que um convite especial, é um mergulho envolvente e rico em olhares e emoções até hoje indescritíveis por aqueles que buscam acolher, compreender e empatizar neste campo fecundo.


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