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Pais: as possibilidades e dificuldades inerentes aos desafios do inevitável encontro consigo mesmo.


A partir dos enfrentamentos diários existentes na relação entre pais e filhos, diversos tipos de sentimentos são despertados durante o exercício da maternidade/paternidade. O retorno dos pais à sua própria época de filhos é inevitável. Ainda que não se deseje este retorno, as emoções diversas, em momentos variados, de amor, alegrias, tensões ou tristeza, inclusive nas situações cotidianas, fazem com que os pais tenham que se “olhar”, se rever, mesmo sem querer.

Os pais são confrontados, indubitavelmente, com seus afetos e vivências passadas, e mesmo que não desejem, têm seus sentimentos acionados, precisando lidar com eles. Tais vivências precisam ser “revisitadas” e elaboradas, sentidas e identificadas, a fim de não interferirem negativamente no momento presente. Elas já são evocadas inevitavelmente, consciente ou inconscientemente, e já interferem de um jeito ou de outro na relação entre os pais e seus filhos.

Mas, a partir da identificação e elaboração destas emoções, é possível fazer escolhas mais conscientes do tipo de relação que se deseja estabelecer com os filhos, reduzindo, desta forma, a interferência das emoções, inerentes à sua história pregressa, na educação e no modo de agir com os filhos.

É importante poder perceber quais emoções são relativas às suas questões, sua vivência e quais são as dos seus filhos ou que emanam da relação com eles, se é que é possível observar tão claramente tal distinção, uma vez que há a interferência de uma na outra.

A relação entre pais e filhos é permeada de questões inconscientes, inerentes à história de vida dos pais, relativa às vivências deles como filho, com seus próprios pais (e com seus irmãos), além das vivências que seus pais tiveram com os pais deles; seus avós com seus bisavós; e assim por diante.

Na relação com seus filhos, então, os pais vêem a “erupção” de sentimentos adormecidos, que estavam escondidos, esquecidos no inconsciente. Tais sentimentos referem a algo que já aconteceu e que está sendo evocado a partir de uma situação nova, em função da relação com um novo ser humano, seu filho. Este acontecimento passado, portanto, pode ser advindo tanto de sua história enquanto filho, como pode estar relacionado à situações vividas por seus familiares e seus antepassados.

Quando um filho nasce, pode ocorrer a reedição das configurações vinculares, baseadas na internalização de padrões de interação e mandatos transgeracionais. Os pais podem se identificar com os seus próprios pais, repetindo padrões de condutas destes, e/ou podem ter uma identificação com o filho, o que gera a tendência de projetar sua história em seu filho, impedindo de “olhá-lo” da forma que ele necessita: como um indivíduo único, com características próprias. Isto, de certa forma, em menor ou maior grau, pode prejudicar as relações futuras de seus filhos (Lebovici, apud Solis Ponton, 2004).

As emoções inconscientes, muitas vezes, aparecem em dada situação, a partir da relação entre as pessoas e o funcionamento delas nessa relação. Podendo ser entre familiares ou não, entre pais e filhos ou entre quaisquer pessoas, dentro de uma relação.

Nas diversas relações interpessoais, ocorre uma comunicação de inconsciente para inconsciente, do inconsciente de uma pessoa para o inconsciente de outra. Sigmund Freud, médico neurologista criador da Psicanálise e do Inconsciente como uma instância psíquica, observou esta questão em sua experiência de analista.

Assim sendo, na relação entre pais e filhos, mesmo que os pais não se proponham comunicar sempre os seus sentimentos a seus filhos, eles (os filhos) os percebem, em função de haver essa comunicação entre inconscientes.

Com relação a transgeracionalidade, segundo Kancyper (2002), "o nascimento de um filho costuma ressignificar certas situações traumáticas dos pais que tinham sido aplacadas durantes anos e só obtém um novo significado a posteriori, a partir do investimento identificador de suas histórias não processadas em algum de seus descendentes. (Kancyper, 2002, p.10).

Freud, em "Lembrar, repetir e elaborar" (1914) diz: "...podemos dizer que o analisando não se lembra de mais nada do que foi esquecido e recalcado, mas ele atua com aquilo. Ele não o reproduz como lembrança, mas como ato, ele repete sem, obviamente, saber o que repete." Isto é, por mais que esteja "esquecido", não esteja presente na consciência, não significa que não exista, e, de alguma forma, precisa aparecer.

Na relação entre os pais e o filho, estas questões também são passíveis de observação. Nestas relações, acontece um encontro entre o inter-psíquico e o inter-relacional, uma vez que o psiquismo dos pais interatua com o psiquismo do filho (Moraes, 2010).

O filho é um novo ser que precisa ser “olhado” e cuidado, precisa ser visto de forma única, mas, como é possível ter este “olhar” sem “olhar para si próprio”? Sem projetar suas angústias e emoções, relativas à sua história de vida, em seus filhos? Tendo em vista que em nossas vidas há o registro inconsciente do que foi vivido, existe a possibilidade desse registro emergir.

As situações vividas pelo indivíduo deixam marcas em sua vida. Tais marcas podem ser boas ou ruins (traumáticas). As boas, as quais dizem respeito ao amor, amparo, cuidados recebidos, propiciam a evolução do indivíduo. Mas, quando há um trauma, é importante que em algum momento se possa ressignificar esse ocorrido, “revisitar” a dor experienciada, a fim de entender a situação vivida e os sentimentos que por ela foram despertados. Com isso, pode ser possível a elaboração, evitando a necessidade de uma repetição da situação traumática. Sobre o trauma, Baranger (1994) afirma: "O trauma não mente. O trauma protesta, exige a repetição, ordena até que se torne claro. O trauma tem sua memória. " (Baranger 1994 in Kancyper, 2002). Por trauma podemos entender "O acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica." (Pontalis, 1971, p.522).

Quando não se pode lembrar do que foi vivenciado, ou comunicar verbalmente suas experiências, mas se é confrontado, de alguma forma, com o passado, de modo que haja a repetição de suas vivências emocionais no momento presente, não se trata mais de passado, e sim, de presente. Um passado/presente que clama por um “olhar”, demanda uma elaboração.

Em algum momento da maternidade/paternidade, inevitavelmente, acontece o encontro consigo mesmo, um retorno ao passado, e uma revisita à sua história se faz necessária, a fim de evitar as repetições patológicas das situações não elaboradas. Em algum momento, o “olhar para si”, o “buscar a si mesmo”, será imprescindível para seguir em frente, a serviço da saúde do filho e de si próprio, bem como da relação entre eles.

O passado, quando não elaborado, traz dúvidas quanto a possibilidade de futuro e interfere significativamente na vida da pessoa. Mas, uma vez que possa ser “revisitada” a história, sentida, revivida em uma nova experiência, é possível a mudança e ressignificação dessa história; a elaboração e, às vezes, uma reparação, podem existir.

De acordo com Klaus (2000), "existe a possibilidade que os danos do passado sejam cicatrizados, reparados ou modificados - para que sejam organizados de forma interna, remodelados e modificados em termos psicológicos e comportamentais nos pais e, por sua vez, na criança. " (Klaus 2000, p.165).

Essa possibilidade se concretiza através do “olhar para si mesmo”, do encontro com as próprias emoções e fantasias inconscientes dos pais. Muitas vezes, para isto ser possível, é necessária a intervenção de um psicólogo, ou alguém que seja capaz de ajudá-los nesta tarefa de “olhar a si próprio”. Por vezes, os pais, ao já possuírem o conhecimento de si mesmo, também podem ajudar seus filhos na tarefa de “olharem para dentro de si” e entenderem seus conflitos e sentimentos.

“A nova historização que se consegue no trabalho psicanalítico possibilita desarticular a história em seus elementos, recompô-la, enriquecê-la e dar outros significados e rumos aos traumas. Pode relativizá-los, alterar o sentido e modificar os pontos de impacto das situações traumáticas e das figuras envolvidas nelas. Abre-se assim um leque de consequências possíveis e um futuro.” (Kancyper, 2002, p.11).

Diante disso, com ou sem ajuda psicoterápica, quanto mais os pais puderem buscar o contato e o entendimento de suas emoções, mais encontrarão recursos para diferenciar os seus sentimentos dos de seu filho. E, com isso, o ajudarão de modo mais satisfatório a identificar e lidar com suas próprias emoções, auxiliando-os, desta forma, a crescerem e se desenvolverem.

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